Este artigo analisa como a precarização do trabalho, disfarçada no discurso de “modernização” das relações de contratação, ficam evidentes em momentos de instabilidade econômica, causando diminuição de renda e incertezas aos trabalhadores e trabalhadoras. O texto foi originalmente publicado na 19ª Carta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) – que pode ser acessada por aqui.
A “reforma” trabalhista aprovada em 2017 “legalizou”, em alguma medida, um conjunto de práticas no campo do trabalho que, historicamente, foram questionadas e combatidas, através do enfrentamento político e jurídico, pelos representantes da classe trabalhadora. Durante o processo que culminou na aprovação, determinados setores da sociedade – empresários, partidos políticos, meios de comunicação –, contrapondo-se à opinião de que a “mudança” na legislação (CLT), na forma como estava sendo feita, retiraria a proteção dos trabalhadores, não economizaram munição no enfrentamento, no campo das ideias, que buscou convencer a população de que o país precisava modernizar sua legislação trabalhista.
A promessa, com a aprovação da “reforma”, e com a diminuição de encargos (apresentados como “desnecessários”), era de geração de emprego, criação de postos de trabalho, aumento das exportações, enfim, o Brasil se tornaria mais “competitivo” no cenário mundial. A ideia de “menos direitos” foi apresentada como uma pauta positiva, associado a uma relação menos “engessada”, com maior flexibilidade e autonomia do trabalhador para negociar seu contrato de trabalho. Esta não é uma situação exclusivamente brasileira. Trabalhadores de outros países também foram, nos últimos anos, vítimas da “flexibilização” que levou a precarização nas relações de trabalho. David Harvey, geógrafo inglês, explica que as crises, no capitalismo neoliberal, são sempre uma justificativa para retirada de direitos.
Ao mesmo tempo em que se constrói um discurso positivo sobre a “flexibilização”, surgem modelos de contratação, no âmbito da prestação de serviços, que estão em absoluta consonância como essas ideias. A “uberização” do trabalho, termo utilizado por, entre outros, Ricardo Antunes, sociólogo do trabalho, é um exemplo disto. O trabalho por meio de “aplicativos” estabelece uma relação mediada por uma “plataforma digital”, o que rompe com o tradicional vínculo entre empresa e trabalhador, e sugere que os indivíduos sejam “agora” donos de seu próprio negócio. Este novo modelo permite uma relação que substituí a ideia de funcionário pela ideia de “parceiro”, o que, pelo menos em tese, contribui para subtrair, das empresas, um rol de responsabilidades.
Com relação aos “novos modelos” de trabalho, que ganharam protagonismo no último período, algumas coisas se conjugaram, entre elas: 1) a chegada de tecnologias (aplicativo) que permitem a intermediação entre “empresa” e “pessoas”, permitindo o seu uso, para a prestação de serviço, em qualquer horário, o que garante um autocontrole de jornada, dando assim a impressão de autonomia; 2) um discurso massivo de que a flexibilização, da jornada e das relações de trabalho, é algo “moderno” e traz vantagens, inclusive de que as pessoas deixam de ser “empregadas” e passam a ser donas de seu próprio negócio; 3) uma alta taxa de desemprego, o que tornou o serviço por aplicativo uma alternativa de renda importante e 4) a legitimação (Reforma Trabalhista) de um modelo de contratação em que a flexibilização de jornada e de direitos são legalizados.
Uma nova “mentalidade” para uma nova tecnologia
A ideia de que um emprego fixo – com renda e jornada fixas, e com direitos (férias, 13º salário, auxílio-refeição etc.) – é coisa do passado, vem sendo utilizada, já há algum tempo, inclusive pelos meios de comunicação, como argumento de que a flexibilização, nas relações de trabalho, é o melhor caminho para tornar as empresas competitivas e a econômica pujante. “Autonomia” tornou-se a pedra de toque para este debate que tenta enfraquecer a concepção “coletiva” de organização dos trabalhadores e põe o individualismo no centro.
Mas, como isso tem ocorrido na prática? Quais são os desafios financeiros para um trabalhador que não tem seu salário garantido no final do mês?
Quando as corridas por aplicativo chegaram ao Brasil, muitos tiveram ganhos satisfatórios a ponto de deixarem seus empregos fixos para dedicação exclusiva ao novo “empreendimento”. Com o tempo, o gasto com a manutenção do automóvel baixou um pouco a expectativa, mas a alta taxa de desemprego, no País, consolidou o “aplicativo” como uma alternativa de trabalho e renda.
Instabilidade econômica
A pandemia da covid-19, que obrigou uma parcela significativa de pessoas a ficar em casa, revelou alguns dos problemas que a falta de empregos formais e bons acordos coletivos podem trazer para os trabalhadores. Uma constatação, sobre este modelo de trabalho, especialmente com a necessidade de ficar em casa por conta da pandemia, é a dificuldade de formar uma provisão. A manutenção, um fator de pouca previsibilidade, obriga o dono do automóvel a gastar parte do dinheiro que poderia tornar-se uma poupança. Outra questão é a necessidade de uma jornada muito alta para garantir o ganho necessário para as contas do mês.
Com a manchete “’Se aumentar mais, profissão acaba’: alta dos combustíveis já levou 25% dos motoristas de apps a desistir”, matéria na BBC News aborda esta questão, e mostra que mesmo pessoas que chegaram a ter, outrora, uma renda satisfatória, têm considerado, no momento, deixar de trabalhar com o aplicativo por ser impraticável realizar corridas, e ter um ganho razoável, com o atual preço dos combustíveis. Situação que se agrava quando o motorista precisa alugar um automóvel, que pode chegar a dois mil reais por mês.
Para tentar compensar os gastos com o combustível, motoristas chegam a trabalhar de 14 a 16 horas, diariamente. Além disso, as empresas não vinham, há algum tempo, reajustando os valores para os motoristas, o que fez com que uma parcela deixasse de trabalhar com o aplicativo. As empresas, por sua vez, negam que estejam perdendo “parceiros” e afirmam que estão reajustando – o que teria acontecido em setembro – o preço das corridas sem repassar aos clientes (G1/Economia).
O fato é que os trabalhadores de “aplicativo” – usamos aqui o exemplo das “corridas”, mas poderíamos citar outros setores, como “entregas” etc. – vêm sentindo dificuldade em obter a renda necessária para cobrir suas despesas. Muitos afirmam que “paga-se para trabalhar”. Quando a economia está melhor, o desemprego é baixo e as pessoas estão consumindo mais, o discurso que defende a flexibilização do trabalho, como um modelo paradigmático, esconde melhor suas desvantagens, e torna-se “aceitável”, sobretudo entre os jovens. Mas, quando se enfrenta alguma crise, logo fica evidente o quanto, num país como o Brasil, faz-se necessário uma legislação que garanta renda e direitos mínimos. A flexibilização, nessa conjuntura, agrava a “precarização” e leva parcela importante dos trabalhadores ao empobrecimento.
Se a precarização do trabalho, por si só, leva às pessoas ao problema da renda (pela supressão de direitos), também agrava o problema da saúde, pois é necessário trabalhar mais (de forma extenuante) para garantir um determinado padrão. Esse conjunto de coisas faz da oposição entre negociações individuais e coletivas um tema, em tempos de crise, fundamental para uma reflexão sobre o futuro da classe trabalhadora.
Claudio Pereira Noronha é graduado em Administração de Empresas, com pós em Globalização e Cultura. Mestre e doutor em Ciências da Religião e assessor do Sindicato dos Bancários do ABC.