Novembro 26, 2024
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Brasil pode voltar ao Mapa da Fome. ONU faz campanha pela segurança alimentar

"Vamos correr juntos por um mundo sem fome. Sistema alimentar saudável, dieta saudável, vida saudável. Corra com isso!", convida o velocista jamaicano Usain Bolt, ganhador de 19 medalhas de ouro em olimpíadas e campeonatos mundiais, em mensagem criada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Divulgada no último dia 8, a campanha demonstra que a fome está no centro das preocupações da Organização das Nações Unidas (ONU).

Frequentemente associada a fenômenos climáticos, como a seca – em vez de à necessidade de democratização do acesso à terra, à produção e distribuição de alimentos – a fome é um flagelo que afeta mais de 800 milhões de pessoas em todo o mundo. Embora mais da metade dessas pessoas estejam em países asiáticos e africanos, há famintos na América Latina, Europa e também nos Estados Unidos, em bolsões de pobreza extrema, especialmente entre a população negra dos estados do sul.

No Brasil, a seca que chegou a matar mais de 500 mil pessoas no semiárido entre 1877 e 1879 – mais da metade da população na época –, e outras 100 mil no período entre 1915 a 1917, durante a grande seca, sempre rondou a população nordestina e de bolsões localizados nas periferias e centros de grandes cidades, em cortiços e nas ruas. A situação inspirou Josué de Castro a mapear as principais carências nutricionais existentes no país e publicar em 1946 em seu clássico Geografia da Fome no Brasil.

No entanto, só começou a ser enfrentada a partir de 2003, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, que  articulado a diversas outras ações, como a construção de escolas técnicas no semiárido e construção de cisternas, entre outras. Em 2014, depois de reduzir em 82,1% o número pessoas subalimentadas, o Brasil finalmente deixou o vergonhoso mapa da fome da ONU.

Menos de quatro anos depois, o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff impôs uma agenda perversa, que afetou sobretudo a população mais pobre. Cortes em benefícios e programas sociais excluíram do Programa Bolsa Família 1,1 milhão de famílias, o que representa 4,3 milhões de pessoas, a maioria crianças. Com o aprofundamento da crise pela política econômica, cresceu o desemprego e vieram mais cortes em ações como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Como a fome voltou a rondar milhões de pessoas, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida retomou em 2017 a campanha Natal sem Fome. 

Foram arrecadadas 900 toneladas de alimentos – quase 400 mil quilos a mais do que a meta estimada – distribuídos por todo o país. Sem ter a pretensão de solucionar o problema no Brasil, a campanha visa chamar a atenção para o problema e mobilizar a população para a luta por direitos.

O tema foi destaque de capa da edição de março da revista Radis Comunicação e Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em o Ronco da Fome, os editores destacam o fato de o Brasil ser um dos maiores produtores mundiais de alimentos em razão de sua grande extensão territorial e capacidade agrícola. E que apesar disso, um contingente estimado pelo IBGE em 3% de nossa população ainda não tem o suficiente para sua nutrição.

A desigualdade social, a histórica concentração fundiária, a monocultura para exportação e nutrição animal são apontados como elementos que impedem o acesso de alimentos para todos, principalmente entre os camponeses nordestinos, que ainda enfrentam grandes secas, cujos efeitos tendem a se agravar com uma política de congelamento dos gastos públicos por 20 anos. 

À Radis, a antropóloga e pesquisadora  Maria Emília Pacheco, integrante da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), afirmou que "o curto período de experimentação positiva nem bem começou e já está sendo desconstruído". E o agrônomo José Graziano, presidente da FAO, afirmou que a crise "terminou por impedir que se consolidasse uma política de segurança alimentar" e que na recessão econômica os investimentos em programas sociais precisam ser aumentados. 

Aula

O retorno ao mapa da fome da ONU, que ronda o Brasil, foi tema de aula inaugural nesta segunda-feira da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). Na avaliação dos participantes, o país pode sim retornar ao vergonhoso mapa: de 2014 a 2016, o número de pessoas em extrema pobreza no Brasil saltou de 5.162.737 para 9.972.090. No mundo, de 2015 para 2016, os conflitos armados e crise econômica provocaram crescimento da fome, atingindo mais de 800 milhões de pessoas. 

"Enfrentar a fome é enfrentar a pobreza extrema. Na medida em que se coloca a questão da alimentação no âmbito da saúde pública, trilhamos o caminho certo", disse o economista Francisco Menezes, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

"A segurança alimentar deve ser uma política de Estado. Se o Natal Sem Fome, uma organização não-governamental, tinha condições de arrecadar alimentos e doar à população, o poder público teria possibilidades de fazer muito mais", protestou Daniel de Souza, filho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho e presidente daquela ONG.

Conforme dados apresentados, a situação extrema de pobreza afeta 4,2% da população brasileira, especialmente no Nordeste e Norte. "O desmonte das políticas de assistência social vitima a população mais pobre. E a situação é de agravamento. Denunciamos a possibilidade de o Brasil entrar no mapa da fome. Não pode haver ajuste fiscal que viole os direitos humanos como a Emenda do Teto de Gastos. Deixo aqui duas perguntas: Que país teremos se prosseguirmos assim? Tudo isso aconteceria se a democracia brasileira tivesse sido preservada? Isso indica qual deve ser nosso campo de luta", refletiu Francisco Menezes, do Ibase.

 

FONTE: Rede Brasil Atual com informações da ENSP