O Banco do Brasil tem até o dia 17 de outubro para responder uma série de questões à Justiça sobre sua participação ou fomento na escravidão no país. A data foi estipulada pelo Ministério Público Federal (MPF), em notificação sobre abertura de um inquérito civil público para investigar o envolvimento da instituição no maior crime contra a humanidade praticado no século 19.
“Em 2020, o movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], iniciou a derrubada de várias estátuas de personagens que se alimentavam do racismo nos Estados Unidos, e se estendeu até a Europa. Com essa ação do Ministério Público Federal, é preciso descortinar o processo de construção do Banco do Brasil, derrubando essas estátuas que marcaram o passado do banco, beneficiando economicamente várias pessoas com o processo de escravização no país, torturando e matando negros e negras”, avalia o Secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Almir Aguiar. “O banco tem o dever de reconhecer os erros do passado. Inclusive, garantir formas de trazer mais negros e negras em seu quadro de funcionários, onde a porta de entrada, por ser um banco público, é via concurso”, completa.
A escravização de seres humanos foi praticada no Brasil durante quase três séculos e meio. Historiadores calculam que, durante o período, cerca de 5 milhões de pessoas foram compulsoriamente retiradas de suas terras e comercializadas no país.
O auge do crime humanitário se deu entre o século 18 e meados do século 19. Somente no período de 1830 e 1850, foram cerca de 753 mil seres humanos retirados ilegalmente do continente africado e trazidos ao Brasil. Esse dados tornam o país responsável pelo maior crime contra a humanidade do século 19.
Nota do BB sobre movimento de reparação histórica
Em nota, o Banco do Brasil afirmou que irá responder aos questionamentos do MPF e ainda que, “como empresa que busca promover a igualdade racial (…) está à disposição do Ministério Público Federal para continuar protagonizando e envolver toda a sociedade na busca pela aceleração do processo de reparação.”
O pedido de reparação histórica ao BB não é novidade e faz parte de um movimento global. Na Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, o Bank of England e as universidades Harvard e Brown University já foram chamados a reconheceu seu papel na escravidão e apresentarem ações de reparação.
Ainda em nota, o BB destacou que mantém grupo de discussão sobre diversidade, através do qual se reúne com movimentos representativos dentro da empresa, incluindo do BB Black Power, como forma de “unir esforços em ações direcionadas à superação da discriminação racial”.
Para Almir Aguiar, a nota do Banco do Brasil ainda é muito branda. “O banco foi construído com sangue negro. Então, o papel do BB hoje tem que ser o de criar mecanismos claros e eficientes de reparação às injustiças cometidas no passado. Uma maneira de fazer isso, por exemplo, é tirar resoluções das próprias reuniões com o BB Black Power, como formas de fomentar a participação de negros e negras nos concursos públicos. E, para com a sociedade brasileira como um todo, estabelecer ações efetivas de políticas públicas direcionada a população negra, promovendo a igualdade de oportunidades, combatendo a discriminação para que erros do passado não voltem acontecer”, resume o secretário.
“É preciso encarar essa discussão, porque esse passado e essa memória fazem parte e ainda afetam nosso presente, por meio das desigualdades sociais e do racismo estrutural. A sociedade e as grandes instituições brasileiras precisam se olhar no espelho e enfrentar esse assunto”, observou o procurador Julio Araujo, em matéria da BBC sobre o tema.
Escravizados como garantia em empréstimos
A ação civil pública que motivou a notificação do MPF ao Banco do Brasil é assinada por um grupo de pesquisadores e historiadores que lançaram à luz a forma como a instituição BB se alimentou e fomentou o tráfico de pessoas.
A primeira relação entre o BB e a escravidão se deu logo quando foi criado, em 1808, com a vinda do rei D. João 6º ao Brasil. Na época, parte do dinheiro da instituição vinha de taxas cobradas de embarcações dedicadas ao tráfico de pessoas.
Outra forma de incentivo ao comércio de seres humanos era a concessão de títulos de nobreza, pelo governo imperial, a escravocratas e comerciantes ilegais que colocavam dinheiro no banco.
Em 1829, o BB foi dissolvido por problemas financeiros. Sua refundação ocorreu em 1833, a partir dalí sua relação com a escravidão se tornou mais intensa, começando pela participação de grandes traficantes no grupo de empresários que assinaram o termo de refundação do BB, entre eles José Bernardino de Sá, maior acionista do BB, em 1853.
Estima-se que Bernardino de Sá tenha contrabandeado 20 mil africanos entre 1825 e 1851, grande parte teria passado por um barracão que manteve no norte de Luanda, capital de Angola, onde deixava os africanos sequestrados até o embarque para o Brasil.
Outros nomes de traficantes ligados ao BB são João Pereira Darigue Faro e João Henrique Ulrich, que foram, respectivamente, vice-presidente e diretor do banco.
João Pereira Darigue Faro, conhecido também como Visconde do Rio Bonito, foi um dos maiores proprietários de escravizados no Império, com 540 seres humanos detidos em nome de sua família. Enquanto João Henrique Ulrich chegou a ser flagrado pelo governo de Angola, em 1842, comandando um barracão de escravizados em Luanda.
Os historiadores descobriram ainda que foram os traficantes de pessoas que financiaram o Estado, com títulos da dívida pública e capital societário nos bancos. Mais de 3 mil execuções de dívidas no Rio de Janeiro, entre 1830 e 1860, revelaram também que escravizados eram utilizados como garantia de pagamento de empréstimos no Banco do Brasil.
*Com informações da BBC News Brasil