Não é possível desvincular o debate para um sistema fiscal justo e progressivo no Brasil sem discutir os problemas que causam a desestruturação do mercado de trabalho, e que leva ao aumento de vagas precarizadas de emprego, assim como o enfraquecimento do INSS, sistema brasileiro de previdência pública. A avaliação é do professor José Dari Krein, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Unicamp.
“A desestruturação do mercado de trabalho faz parte de uma mesma política neoliberal, de desoneração da folha de pagamentos e da reforma da previdência”, explicou, durante sua participação na última mesa do seminário “Reforma Tributária para um Brasil socialmente Justo”, que abordou os impactos das políticas de desoneração da folha de pagamento. O evento foi realizado nessa quinta-feira (29), na capital paulista, pelo Cesit, Instituto Justiça Fiscal (IJF) e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Em sua apresentação, Krein observou que não é possível alcançar um sistema fiscal justo e progressivo no Brasil, assim como um sistema de previdência social robusto e sustentável, sem enfrentar os problemas da desestruturação do mercado de trabalho.
“Se somarmos hoje as pessoas que querem trabalhar, a força de trabalho potencial, mais aqueles que estão na informalidade, teremos 56 milhões de pessoas [que, fora do modelo CLT de contratação, não contribuem para o INSS]”, ressaltou Krein. “O mercado de trabalho está tão precarizado que ser motorista de aplicativo passou a ser uma das principais alternativas de emprego hoje no Brasil”, completou.
O professor destacou que os “movimentos sociais têm sido incapazes” de mostrar à sociedade o quão nocivo é o quadro do mercado de trabalho brasileiro hoje. “Precisamos de uma agenda mais audaciosa, para que a sociedade entenda a importância de reorganizar o mercado de trabalho”, pontuou.
Desoneração enfraquece INSS
A mediadora da mesa, Maria de Lourdes Nunes Carvalho (Lourdinha), diretora de defesa fiscal da Sindifisco Nacional, entidade representativa dos Auditores-Fiscais da Receita Federal, fez um grande alerta sobre o sistema de previdência público brasileiro, que vem perdendo entrada de recursos, ano após ano, tanto pela desestruturação do mercado de trabalho quanto por reformas e políticas de desoneração da folha de pagamento, promovidas pelo Estado.
“O processo da última reforma [da previdência, promulgada no governo Bolsonaro, em 2019] instituiu o risco de se perder uma das grandes conquistas para o mundo rural, onde os trabalhadores, antes da Constituição de 1988, não tinham a provisão legal para uma aposentadoria”, lembrou.
Com a reforma, a autodeclaração de atividade no campo, pelo trabalhador rural, não é mais aceita. Para se aposentar, agora, quem se enquadra nesta categoria é obrigado a inscrever-se no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), banco de dados alimentado pelo Cadastro do Agricultor Familiar (CAF). Acontece que muitos agricultores não estão enquadrados no CAF, portanto, correm risco de ficar de fora dos direitos previdenciários.
“A luta pela aposentadoria é uma luta de todos nós, é a luta da proteção social, que tem que ser uma garantia do Estado brasileiro”, pontuou Lourdinha, completando que, além das reformas que enfraqueceram o INSS, o maior risco que a Previdência Social sofre é a desoneração da folha de pagamento.
O palestrante Leandro Horie, do Dieese, confirmou a fala de Lourdinha. “Toda vez que acontece desoneração tributária, na folha de pagamento de setores produtivos, essa desoneração recai sobre a previdência social. E por que isso acontece? É porque a previdência social é onde tem menos lobbys [grupos de pressão] para segurar [os recursos]”, destacou o economista.
Mais caro para Estado, pior para trabalhadores
Horie revelou ainda que os programas públicos de desoneração “sempre foram alvo de controvérsia” no debate tributário brasileiro. Isso porque, de um lado, o setor empresarial alega sofrer com a alíquota e recolhimento, que impacta na competitividade das empresas brasileiras (preço e custo). De outro, o recolhimento de tributos das empresas compõe parte fundamental no montante que alimenta a previdência social.
O economista apontou, por outro lado, que estudos mostram que a desoneração não tem o efeito virtuoso esperado sobre a economia. “O discurso que justifica os programas de desoneração de folha de pagamento é o seguinte: o que a empresa deixa de gastar com recolhimento na folha ela vai utilizar na ampliação da sua planta produtiva, geração de emprego. Mas o que se verificou é que esses recursos apenas serviram para aumentar a margem de lucro, e não geração de emprego ou mais gastos dessa empresa no mercado”, destacou.
Horie mostrou ainda que a implementação do Plano Brasil Maior, de desoneração, custou ao governo, de 2012 a 2019, R$ 113,6 bilhões. “Então, você está tirando dinheiro das contas públicas e direcionando para as empresas, que não revertem isso na criação de empregos. Portanto, o que os levantamentos mostram é que a desoneração, além de não se pagar, aumenta os gastos do Estado”, concluiu.
O técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Humberto Carvalho Júnior, também trouxe dados que corroboraram a análise de que as políticas de desoneração da folha de pagamento não são benéficas à economia e ao Estado. A primeira falácia que ele desmontou foi que as empresas no Brasil gastam muito na folha de pagamento. “O sistema de contribuição brasileiro, nesse setor, é semelhante ao de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), grupo de países com a economia mais forte do mundo”, disse.
Carvalho Júnior reforçou que o enfraquecimento do financiamento do INSS se deve, em grande medida, às políticas de desoneração da folha, que, por sua vez, são incentivadas porque, no discurso do empresariado sobre os altos gastos, não há separação entre empregador e empregado. “É um erro a análise de que o maior custo da folha é apenas do lado do empregador, o trabalhador também contribui”, pontuou, lembrando que o custeio do sistema previdenciário do Brasil é tripartite: uma parte vem do Estado, uma do trabalhador e outra do empregador.
Conta sobra para o trabalhador
“Por que há sempre uma luta do setor empresarial para pagar menos impostos? Porque tem o interesse de cada setor, o lobby que o Leandro Horie fez referência, mas tem uma questão ideológica: no fundo, as políticas sociais têm que reduzir de tamanho, para que, exatamente, o setor empresarial pague menos tributo. É a lógica de o mercado se impor, no sentido da definição da alocação dos recursos. Essa é a questão ideológica e política que fundamenta a lógica do capitalismo”, analisou Jose Dari Krein. “Então, nesse sentido, quem vai pagar a conta, se você desestrutura políticas públicas, desestrutura o Estado, fragiliza essa possibilidade de ação política? Quem vai pagar a conta é o elo mais frágil dessa relação, que são os trabalhadores e trabalhadoras, que estão na precariedade, que vão ter dificuldade à aposentadoria, dificuldade de ter renda. Com isso, teremos cada vez mais uma sociedade mais desigual”, completou, concluindo que é urgente uma reestruturação do mercado de trabalho.
Encaminhamentos
O seminário “Reforma Tributária para um Brasil socialmente Justo” terminou com a aprovação de encaminhamentos para fortalecer a participação dos movimentos sindicais e sociais na reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional.
“Precisamos fazer chegar esse debate na sociedade, como um todo, para que se compreenda que o que está em jogo é muito maior do que quem vai pagar mais ou menos imposto. Nós estamos falando da vida real, do financiamento do sistema de previdência, da saúde, por exemplo”, destacou o supervisor-técnico do Dieese, Fausto Augusto Júnior. “A discussão no Senado hoje, sobre a reforma tributária, mostra o quão estamos desmobilizados, em termos de sociedade, para enfrentar esse debate. Quem está pautando esse debate hoje são os agentes econômicos. Os trabalhadores, depois, terão que discutir as consequências”, completou.
A proposta aprovada foi a criação de um manifesto, assinado pelas entidades organizadoras do evento e entidades sindicais, apoiando o governo em medidas que já tramitam no Congresso e que fecham as portas à sonegação e evasão de dinheiro dos super-ricos.
O segundo ponto encaminhado foi o estabelecimento de um grupo de trabalho para construir um conjunto mínimo de propostas para tributar os super-ricos, e sobre a desoneração da folha, que servirá de pauta junto ao Governo e ao Congresso, no debate sobre a reforma tributária.
Os participantes do seminário concordaram, ainda, em unir forças em torno da campanha “Tributar os Super-ricos”, com vistas a construir mobilizações para chamar atenção da sociedade e dos parlamentares. Por fim, foi aprovada a implementação de uma conferência popular sobre tributação.
Fonte: Contraf-CUT