Na terça-feira (1º), o diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS) para situações de emergência, Michael Ryan, disse estar preocupado com a situação da covid-19 na América do Sul, apontando que 8 dos 10 países com maiores taxas de mortalidade pela doença nas últimas semanas estão localizados nas Américas. “A transmissão da doença é intensa, a transmissão comunitária é generalizada e os sistemas de saúde continuam sob pressão”, pontuou.
Atualmente, América do Norte, Europa, Ásia, África e Oceania estão registrando uma média semanal de menos de 100 novos casos de covid-19 por milhão de pessoas por dia. Já a América do Sul ultrapassa os 300 novos casos de covid-19 por milhão de pessoas diários.
Os números oficiais do continente pioraram após o Peru ter revisado o número de mortes decorrentes do novo coronavírus até 22 de maio, passando na ocasião de 68.053 para 180.764 vítimas, tornando-se o primeiro país do mundo em óbitos decorrentes do novo coronavírus por 100 mil habitantes. Antes, o governo produzia um relatório registrando apenas mortes de pacientes sintomáticos que testaram positivo, mas o comitê técnico acrescentou outros seis critérios.
E o Brasil pode ter contribuído para a marca recorde do país vizinho. Na capital, Lima, 40% dos vírus sequenciados em 24 de março foram P.1, variante identificada pela primeira vez no Amazonas e que já está em quase todas as regiões do Peru, de acordo com o Ministério da Saúde do país vizinho. “É razoável esperar que (a P.1) tenha contribuído para a rápida disseminação do vírus”, disse o chefe da missão Médicos Sem Fronteiras no Peru, Jean-Baptiste Marion, de acordo com artigo escrito por Luke Taylor, publicado no British Medical Journal.
Estudos sugerem que a variante P1 é 1,7 a 2,4 vezes mais transmissível do que as variantes anteriores. Mas não se pode atribuir somente à cepa originada no Brasil a situação caótica. Diversos especialistas apontam também para outros fatores como o efeito do relaxamento das medidas de distanciamento social, além de sistemas de saúde em colapso. O chefe do laboratório de virologia molecular do Centro Universitario de la Región Norte, Rodney Colina, destaca à publicação britânica o exemplo do Uruguai, em que a chave para entender o aumento de casos é a volta de uma circulação maior de pessoas. “Isso se explica principalmente pela reabertura de atividades como o início das aulas de ensino fundamental, fundamental e médio.” O país seria um dos exemplos típicos de quem achou que já havia controlado a pandemia, mas flexibilizou as medidas de distanciamento cedo demais.
Desigualdades que matam
A pandemia, além de escancarar as desigualdades de todos os tipos na região, desde as socioeconômicas até as de acesso à saúde e saneamento básico, também mostra que as condições de vida de boa parte da população acabam retroalimentando o ciclo de contágio. Segundo o secretário-executivo adjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Mario Cimoli, as classes de baixa renda foram deixadas à própria sorte para enfrentar a covid-19 em muitos países.
“Você tem um bom sistema de saúde para os ricos e um péssimo sistema para os pobres”, disse Cimoli em entrevista à ABC News. Ele ressalta que um dos problemas relacionados à crise sanitária é o fato de que boa parte da população da região teve de continuar trabalhando para sustentar suas famílias, mas sem acesso a cuidados médicos adequados caso adoecessem.
Por outro lado, a vacinação contra a covid-19 também avança lentamente não somente na América do Sul, mas em todo o continente latino-americano. Aproximadamente 3% dos cidadãos latino-americanos foram vacinados, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), com alguns países apresentando taxas de imunização melhores como o Chile, que já vacinou totalmente 42% de sua população, e o Uruguai, com 30%, de acordo com a Universidade Johns Hopkins.
Na sexta-feira (4), o porta-voz do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Stéphane Dujarric, anunciou que o Paraguai recebeu um terceiro lote de mais de 130 mil doses de vacinas na quinta (3) e a Colômbia, no mesmo dia, 900 mil doses, ambos por meio do consórcio Covax-Facility. Até agora, a Colômbia recebeu mais de 3,2 milhões de vacinas por meio do consórcio, cerca de 20% de seu total de vacinas.
O papel da desinformação
Sobre a situação da pandemia de covid-19 na América do Sul, o professor da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e pesquisador na área de virologia química Luis Schang afirma que um dos fatores importantes nas epidemias locais tem sido o comportamento das populações, além das ações específicas de governos. “Em locais onde a ameaça foi devidamente identificada e avaliada e as pessoas reagiram de acordo, os surtos foram muito mais fáceis de controlar e a mortalidade foi muito menor. Nos lugares onde a população local não conseguiu entender a magnitude do desafio e agir de acordo, os surtos foram muito piores e as consequências terríveis”, afirma, em entrevista à RBA.
O pesquisador cita o exemplo da Índia, onde o vírus circulava em meio à população em níveis baixos até o início de grandes comícios eleitorais e celebrações religiosas. “Agora, não há dúvida de que tanto o governo quanto a imprensa têm um papel muito importante a desempenhar na educação adequada da população sobre a gravidade do surto e as terríveis consequências de não controlá-lo”, ressalta. “Em particular, um dos fatores críticos é comunicar a informação real sem distorcê-la para se adequar a um objetivo político ou ideologia. Isso é complexo, pois as informações vão sendo coletadas à medida que avançamos e sempre estão incompletas. Na minha opinião pessoal, isso não aconteceu na América Latina.”
Para Schang, as mídias sociais foram usadas no continente latino-americano como uma fonte de “informação” com consequências “extremamente prejudiciais”. “Há muitas opiniões inflexíveis, desinformadas ou mal informadas, circulando como informação na América Latina, e poucas informações factuais reais. Este grande problema de comunicação deixa os cidadãos confusos e incapazes de analisar as opiniões apresentadas, levando a uma confusão geral”, aponta. “Os governos, em muitos casos, foram uma das fontes de desinformação, mas também foram outros segmentos políticos, repórteres, a imprensa em geral e até mesmo médicos, pesquisadores e muitos outros que deveriam ser fontes de informações devidamente analisadas.”
Um estudo comparativo realizado pelos pesquisadores Rasmus Kleis Nielsen, Anne Schulz e Richard Fletcher, do Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo da Universidade de Oxford, relacionou dados de abril de 2020 e o mesmo mês de 2021, constatando que a porcentagem de pessoas que dizem confiar em organizações de mídia caiu em sete dos oito países analisados, incluindo Brasil e Argentina.
O relatório destaca que as desigualdades no acesso a notícias em torno da pandemia parecem alinhadas com desigualdades pré-existentes, em torno de fatores como idade e educação. No Brasil, os mecanismos de busca online são considerados mais confiáveis pelos entrevistados para notícias e informações sobre o covid-19. O que também pode induzir a erros, já que a maioria dos sistemas de pesquisa na internet levam em conta a experiência do usuário no dia a dia.
Mas os potenciais grandes difusores de notícias falsas são as redes sociais. 40% dos entrevistados brasileiros dizem ter identificado fake news no Whatsapp na semana anterior ao contato com o estudo. “A fonte em nossos dados que está mais consistentemente associada a uma maior crença de desinformação é depender de aplicativos de mensagens para obter informações sobre o coronavírus. Em todos os países estudados (exceto na Coreia do Sul, onde as pessoas usam diferentes plataformas de mensagens), vemos que as pessoas que contam com aplicativos como o WhatsApp, ou rivais menores como o Telegram, para aprender sobre a pandemia têm mais probabilidade de acreditar em mais desinformação relativa à vacinação contra a covid-19”, dizem os pesquisadores.