Apresentada em dezembro pelo governo, a PEC 287 contraria especialistas e centrais sindicais
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287, enviada ao Congresso em dezembro pelo presidente Michel Temer com objetivo de reformar a Previdência Social no país, é mais uma tentativa de desconstrução das garantias sociais previstas na Carta de 1988 – prática que tem pautado de maneira acelerada o governo depois do impeachment de Dilma Rousseff. Submerso nos ditames de um projeto sem respaldo da sociedade – que desde 2002 se recusa a eleger governos com ideias de teor neoliberal –, mas apenas das elites endinheiradas do país, a reforma muda radicalmente a concepção de um sistema que até aqui refletia, ainda que com limitações, os interesses dos trabalhadores e a capacidade de organização de suas categorias. O texto conseguiu o feito de contrariar especialistas em Direito do Trabalho e previdenciário, além de todas as centrais sindicais.
Para o presidente da CUT, Vagner Freitas, a agenda de Temer está destruindo o Brasil. “É pior do que o confisco da poupança feito por Collor. Não é com arrocho, desemprego e o fim das aposentadorias que o Brasil vai sair da crise. Isso só contribui para aumentar a pobreza, a violência e fazer o país andar para trás”, afirma. “A classe trabalhadora vai aos poucos se conscientizando dos prejuízos causados por esse governo e, com certeza, se organizar e mobilizar cada vez mais para reverter essa situação”, diz, referindo-se a uma pesquisa feita pelo Instituto Vox Populi a pedido da central, que revela a crescente desaprovação do governo pelos brasileiros – e que 87% rejeitam a reforma da Previdência.
Segundo o coordenador do Dieese Fausto Augusto Júnior, a ideia é “absurda” e faz parte de um processo de desconstrução do sistema previdenciário. “De um ponto de vista bem objetivo, estamos falando que vamos deixar em torno de 70% da população fora do sistema previdenciário. Mais grave do que isso é que é uma proposta para a desconstrução do setor da Previdência pública no Brasil”, afirmou Fausto, em entrevista ao Seu Jornal, da TVT.
Na semana que a PEC foi apresentada, os metalúrgicos do ABC paulista promoveram um grande protesto, que reuniu mais de 12 mil pessoas na Via Anchieta, que liga São Paulo ao litoral sul, dando uma indicação de que se inicia um período de resistência. “Com essa proposta não tem discussão, tem luta. Não vai ter arrego e a nossa proposta é que o Michel Temer retire o texto”, afirmou o presidente do sindicato da categoria, Rafael Marques. “O caminho é ocupar as ruas.”
Aprovada a toque de caixa pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na madrugada de 15 de dezembro – foram 31 votos a favor e 20 contra –, a 287 aguarda a formação de uma comissão especial na Casa, o que deve ocorrer em fevereiro, depois da eleição da mesa diretora.
Dias depois da apresentação da PEC, no início de dezembro, várias centrais sindicais se reuniram na sede do Dieese, em São Paulo, para avaliar a proposta governista, que foi criticada por todas as entidades. “Há uma avaliação preliminar de um posicionamento contrário ao projeto, que afeta em muitas dimensões a vida do trabalhador”, afirmou o diretor técnico do instituto, Clemente Ganz Lúcio.
Ainda em outubro, o Dieese havia divulgado um documento com propostas do movimento sindical, enfatizando a necessidade de diálogo para implementar mudanças. “As sugestões mostram que é possível pensar em sustentabilidade em longo prazo na Previdência, sem passar de imediato pela redução dos direitos de proteção social. O debate sobre a Previdência, no longo prazo, é sempre necessário, mas isso deve ser feito com ampla participação de trabalhadores e as organizações sindicais.”
“Uma reforma tem de ser para melhorar a vida dos brasileiros”, afirma o secretário-geral da CUT, Sérgio Nobre, chamando de “perversa” a proposta do governo e dizendo que o país caminha para a selvageria. “A CUT há algum tempo já vem falando que esse tema tem de ser debatido de forma ampla na sociedade brasileira. Queremos uma Previdência que proteja os trabalhadores.” O secretário de Previdência da CTB, Pascoal Carneiro, acrescenta que a intenção do governo é “privatizar o sistema público e acabar com o capítulo da Constituição que trata de seguridade social”.
Aliado do governo, o presidente da Força Sindical e do Solidariedade, deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, observou que o projeto tem uma série de irregularidades. “Provavelmente, a grande maioria do povo brasileiro vai morrer antes. Também não aceitamos a desvinculação do salário mínimo das pensões”, acrescenta.
Tão importante quanto a adoção de 65 anos de idade mínima para a aposentadoria, um dos pontos centrais do projeto de Temer, é a unificação das regras de acesso e benefício iguais entre trabalhadores, não importando se homens ou mulheres, se urbanos ou rurais, se oriundos do setor privado ou público. Nesse sentido, a economista e professora Rosa Maria Marques, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, estudiosa da Previdência no Brasil, considera a reforma uma profunda mudança, que despreza as especificidades dos trabalhadores e não altera o modelo de financiamento do sistema. “Houve uma clara opção por trabalhar com o fluxo de despesas, muito embora proponha o fim da isenção da contribuição sobre os produtos exportados, o que deve aumentar a arrecadação.”
A professora faz ponderações sobre o chamado “rombo” da Previdência, que segundo o governo pode superar R$ 180 bilhões em 2017. “Esses números são construídos considerando a Previdência Social em si, isto é, suas receitas e despesas. Ocorre que a Previdência Social faz parte da Seguridade Social que, como sabem, é superavitária”, diz Rosa. “Mas essa constatação não implica desconhecer que a população está vivendo mais, de forma que permanece no sistema recebendo aposentadoria por mais tempo. Tal situação demográfica coloca a necessidade de a sociedade brasileira pensar sua sustentabilidade de médio e longo prazo.”
Rosa Marques: o cálculo para não pagar
JAILTON GARCIA/RBA
Rosa: está em jogo um pacto de proteção social para o risco velhice
A opção por atacar as despesas significa que pelo novo regime, se aprovado, os trabalhadores terão um caminho mais árduo para se aposentar, que culminará com a necessidade de mais tempo de contribuição e menores valores a serem percebidos. Também torna-se praticamente impossível alcançar o valor da aposentadoria pelo teto, a não ser que o trabalhador contribua por 49 anos, uma medida impensável se o governo em questão tivesse respaldo do voto direto. “Enfim, o cálculo proposto foi concebido para que não se pague a aposentadoria pelo valor do teto”, diz a professora Rosa Maria Marques, da PUC de São Paulo.
A adoção da idade mínima de 65 anos para homem e mulher, e o período mínimo de contribuição de 25 anos para requerer o direito à aposentadoria são as mudanças essenciais da proposta. O que a senhora pensa disso?
Eu complementaria que a harmonização entre os atuais regimes e para todos os entes da federação é central na proposta encaminhada. Isto é, ela propõe regras de acesso à aposentadoria e de cálculo do benefício iguais entre trabalhadores do setor privado e servidores, sejam da União, dos estados ou dos municípios, neles incluindo os que exercem cargo eletivo. O único setor que fica de fora é constituído pelas Forças Armadas.
Começando por esse último aspecto: não é a primeira vez que isso é aventado, mas é a primeira vez que é proposto. Sua justificativa se funda na ideia de que a cobertura do risco velhice (aposentadoria) deve ser igual para todos e, por isso, essa perspectiva foi abraçada por setores da esquerda brasileira em diferentes momentos. Ao unificar as regras de acesso dos regimes, os regimes próprios deixam de ter especificidades, as quais foram produto de vários fatores, entre eles a força que as categorias tiveram no passado para impor essas especificidades.
Poder-se-ia dizer, por outro lado, que a harmonização dos regimes tem por detrás a concepção de que a aposentadoria constitui uma renda de substituição ao trabalho em geral. No Brasil, isso já havia sido feito quando foram unificados os institutos estruturados com base em categorias de trabalhadores e criado o INSS. Mas tratava-se dos trabalhadores do setor privado da economia. Agora, a proposta abrange todos os trabalhadores, independentemente da função exercida, se no setor privado ou público. A ideia de trabalho, portanto, ocorre em outro nível de abstração.
A consequência disso, além de implicar em perda para algumas categorias, significa não mais considerar os servidores de forma diferente dos demais trabalhadores. Em outras palavras, o reconhecimento de que o servidor deveria ter um estatuto diferente exatamente por ser o representante do Estado na relação com a sociedade civil e que, por isso, deveria ter sua renda garantida durante toda sua vida (ativa e inativa) deixa de existir. A rigor, essa garantia para os servidores da União já tinha sido perdida em 2003, quando da reforma feita por Lula. Mas essa regra só foi aplicada para os novos ingressantes. Agora, a proposta se aplica para todos os servidores com idade igual ou menor que 50 anos e para as servidoras com idade igual ou menor que 45 anos.
Mas o que a senhora pensa da idade de 65 anos?
Ela pressupõe o desconhecimento das condições desiguais entre homens e mulheres e entre trabalhadores urbanos e rurais. Basicamente, a proposta de tratamento igual para o acesso à aposentadoria desconsidera que a dupla jornada de trabalho ainda é uma realidade para a maioria das mulheres brasileiras. Além disso, a imposição do mínimo de 65 anos, para aqueles que ingressarem depois da publicação da emenda (vigorando uma transição para os homens com idade superior a 50 anos e para as mulheres com idade superior a 45 anos) eleva sobremaneira o tempo de permanência na vida ativa. Em 2014, a idade média dos que requereram aposentadoria no meio urbano foi de 54,2 anos, sendo de 52,3 no caso das mulheres e de 55,1 dos homens.
A reforma atira em um lado só: aumentar as exigências de acesso hoje para gastar menos com benefícios mais adiante. Mas não trata de como modificar/ampliar a base e o volume de arrecadação. Isso pode ser chamado de reforma?
Houve uma clara opção por trabalhar com o fluxo de despesas, muito embora proponha o fim da isenção da contribuição sobre os produtos exportados, o que deve aumentar a arrecadação. A alternativa das receitas colocaria, para seus proponentes, alguns problemas. No caso de aumentar os valores das alíquotas das contribuições atualmente vigentes (sobre a folha de salários ou sobre o faturamento no caso das empresas que optaram por substituir a contribuição sobre a folha pelo faturamento), isso seria muito mal recebido por todos os segmentos da sociedade, sejam empresários ou trabalhadores, pois há a percepção de que o nível de imposição do Estado é muito elevado. Se, como alternativa, fossem pensadas outras fontes de financiamento que não aquela do trabalho (pois trabalham com a ideia de que só têm direito à aposentadoria aqueles que para ela contribuíram, conformando uma aposentadoria meritocrática, no jargão das políticas sociais e não uma renda decorrente da cidadania), além de que isso seria entendido como aumento da carga tributária, tal iniciativa comprometeria o “desenho” de sua previdência social que estão propondo reforçar. Tanto é assim que sua proposta de redução dos valores das pensões é fundamentada na ideia de que seus valores decorrem de um direito a um seguro, de modo que podem perfazer um valor menor do que o salário mínimo. Somente a rendas que substituem o trabalho será mantido o piso de um salário mínimo. Nesse sentido, a reforma não acompanha o que está sendo feito em outros países, mesmo naqueles que tinham as contribuições calculadas sobre os salários como sua principal base de financiamento.
Não há sinal de retomada do crescimento econômico, ao contrário: as previsões são de agravamento da recessão. Com mais desemprego e tendência de redução da renda do trabalho, a arrecadação da Previdência cairá, e suas obrigações continuam. Isso não é pior do que enxugar gelo?
Sim, a perspectiva de manutenção da recessão para 2017 só agrava a situação da Previdência. Por sua natureza, mudanças da Previdência Social somente têm impacto no médio e longo prazo. Para que tivesse impacto imediato, seria necessário desconsiderar os direitos adquiridos. No período recente, houve o caso da Grécia, em que reduziram os valores das aposentadorias em vigor. Aqui, pelo menos, isso não está sendo proposto.
Dada a constatação de que não só a expectativa de vida aumenta como a taxa de jovens, futuros contribuintes da Previdência, diminui, qual é a maneira ideal de se pensar a sustentabilidade da previdência pública (ser justa hoje e viável amanhã)?
A construção da política pública da proteção à velhice, pois é disso que estamos falando ao falar da Previdência Social, é resultado de diversos fatores e recebe diferentes interpretações a depender da escola de pensamento de seus analistas. O que é indiscutível é que se trata de uma política pública desenvolvida no capitalismo, que se fez necessária quando as redes de proteção anteriores (familiares e comunitárias) se extinguiram com o processo de urbanização e de assalariamento. Essa necessidade, no entanto, não foi reconhecida de imediato, e para seu reconhecimento foi fundamental a luta desenvolvida pelos trabalhadores a partir de seus organismos de ajuda mútua e de seus posteriores sindicatos. Ao fim do período de construção da proteção social, que foi longo, pode-se se dizer que ela foi resultado de um acordo ou pacto estabelecido entre as diferentes classes sociais. Desse pacto, origina-se o desenho da proteção concedida, sua forma de financiamento e organização.
Pensar outra proteção social para o risco velhice implica, portanto, pensar em fazer um novo pacto. Para isso, os trabalhadores organizados, os movimentos sociais e os partidos que lhe representam precisam ter força para serem ouvidos. Infelizmente, a situação atual parece não ser essa, estando os trabalhadores em franca defensiva.
A proposta do governo, se aprovada, vai tornar a Previdência oficial menos atraente do que a previdência privada? A senhora prevê que haverá migração para a previdência privada? Pode ser essa a intenção de fundo do governo?
Migração não pode haver, pois os trabalhadores do mercado formal estarão, como agora, obrigados a contribuir para o INSS. A ampliação da previdência privada ocorrerá por outros mecanismos. O primeiro deles é que os estados e municípios que tiverem instituído regime próprio terão, no prazo de dois anos, que criar uma previdência complementar. O segundo deles é que provavelmente a média do valor das aposentadorias irá cair, incentivando a que os trabalhadores de maior renda busquem complementar sua aposentadoria junto ao setor privado. E esses trabalhadores podem ser do setor público ou privado.
Essa possibilidade decorre da mudança de cálculo do valor da aposentadoria, substituindo o fator e/ou a fórmula 85/95. Esse novo cálculo inicia com 51% da média dos salários de contribuição, sendo acrescido de um ponto porcentual por ano de contribuição, o que é menos do que receberia hoje, fosse aplicado o fator ou a fórmula.
É claro que isso será mais perverso quanto menor for a renda do trabalhador. Os com renda mais alta, com capacidade de poupança mesmo que pequena, estarão suscetíveis a serem convencidos a complementar sua aposentadoria junto ao setor privado de previdência.
Se a política de valorização do salário mínimo for extinta (expira ano que vem) e cessarem os aumentos reais, significa um duplo arrocho, se essa reforma passar: 1) dificilmente as pessoas conseguirão se aposentar pelo teto; e 2) sem valorização do salário mínimo, o teto também vai perder valor. Isso não seria um efeito também alarmante?
Não há dúvida sobre isso. Os benefícios decorrentes do trabalho (aposentadorias) continuam tendo como piso o salário mínimo. Contudo, se a política de sua valorização for descontinuada, os trabalhadores de mais baixa renda serão aqueles que mais sofrerão com a reforma. Apontei os motivos disso ao responder sua outra pergunta. Mas talvez valha a pena reforçar que não foi encaminhada proposta de redução do teto, mas que garantir uma aposentadoria de valor igual exigiria não só ter contribuído sempre pelo teto do salário de contribuição como 49 anos de contribuição. Ou a pessoa começa muito mais cedo, ou ela terá de trabalhar por mais tempo. Enfim, o cálculo proposto foi concebido para que não se pague a aposentadoria pelo valor do teto.
Fonte: Rede Brasil Atual