Antes de falar da crise aprofundada pela pandemia, gostaria de voltar um pouco antes, em 2015, quando o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), que regulamenta nosso sistema, tentou discutir e trabalhar com a resolução nº 30. O foco era permitir que os fundos de pensão se adaptassem a um novo patamar de investimentos. Atualmente, 80% dos investimentos das nossas fundações estão em títulos públicos federais. Como os juros no Brasil sempre foram absurdamente altos, o sistema se acostumou a rentabilizar a partir desses papéis.
Mas, já estava claro, desde 2012, 2013, que a taxa de remuneração desses títulos estaria decrescendo ao longo do tempo e gostaria de frisar esse “ao longo do tempo”, pois os fundos de pensão fazem investimentos de longo prazo, apesar de a visão dos atores do sistema (participantes, patrocinadoras e órgãos de regulação) ser de um imediatismo irracional para quem trabalha com previdência. A ideia da resolução era dar o tempo necessário às fundações para se adaptarem e buscarem a rentabilidade em outros ativos que não os títulos públicos federais, redirecionando os investimentos para a área produtiva.
Presente conturbado
Chegamos a 2020 com esse cenário e o que vemos agora? Aumento do passivo dos planos de benefício definido (BD), a rentabilidade patinando, sem conseguir responder ao aumento do passivo, taxa Selic baixa, juros reais da economia praticamente negativos, e os fundos de pensão sem conseguir redirecionar os investimentos para a economia real.
Na crise instalada em 2020, do ponto de vista das patrocinadoras, temos a crise econômica que impacta fortemente as empresas, que afirmam ter dificuldade em honrar os compromissos com as fundações. Muitas começam a se apropriar do saldo não resgatado para pagamento de contribuição normal nos planos de contribuição definida e variável (CD e CV), além da política de privatização das estatais e de redução dos custos “pós-emprego”, pois no Brasil previdência é encarada como despesa.
Em vez de discutirem como fazer para o país voltar a crescer, as empresas passam a discutir como transferir o ônus da crise para os participantes, o elo mais fraco do sistema, desrespeitando contratos de 20, 30 anos, e com o aval do órgão fiscalizador e do judiciário.
Do ponto de vista dos participantes e assistidos, as consequências imediatas das demissões e da falta de apoio do governo significam a perda da rentabilidade dos planos vitalícios, pressão para retirada de patrocínio e extinção dos planos BD, além do fato de se tornarem, muitas vezes, a única fonte de renda familiar. E os planos BD estão criminalizados porque é aí onde estão os tais custos “pós trabalho”.
O Estado, que deveria agir para defender os participantes, não cumpre com o seu papel, chancelando a transferência da conta para os participantes, sendo conivente com o desrespeito ao arcabouço regulatório do sistema. Isso também faz parte do que chamo de racionalidade neoliberal.
Consequências
Em 2020, a Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão e dos Beneficiários de Planos de Saúde de Autogestão (Anapar) apresentou propostas para enfrentar a crise da covid-19, que sequer chegaram a ser analisadas, assim como outras que estavam na pauta do CNPC. Apenas aprovaram alteração de prazos para envio de documentos à CNPC. O argumento para a inércia e omissão foi que a pandemia se resolveria até o fim daquele ano. As consequências estão aí, nos balanços de 2020.
Mas, e o futuro? Apesar do cenário, acredito que haja, sim, um futuro e ele depende de nós para ser bom ou ruim. Apenas com outra visão de sociedade conseguiremos sair deste atoleiro em que nos encontramos. O problema, no Brasil, não é a crise da covid-19, que, mesmo difícil, não era para nos deixar passando por tantas agruras. A visão de sociedade e o projeto de nação em vigor potencializam os estragos da pandemia. É uma visão ultraliberal de sociedade, que trabalha o tempo todo em favor de uma minoria, em detrimento de uma maioria.
Este é o pano de fundo. A Anapar tem um projeto de sociedade e de sistema que não é o que está posto. O que foi implantado em 2016 é um projeto que visa concentrar renda na parcela mais rica da sociedade, com o congelamento dos investimentos em saúde, educação, seguridade social por 20 anos. Depois, com a reforma trabalhista, que flexibilizou direitos e retirou financiamento da previdência.
Na sequência, uma reforma da previdência que retirou direitos e – muita gente não percebeu – abriu a possibilidade para os bancos e seguradoras administrarem os recursos dos fundos de pensão, acabando assim com a previdência complementar fechada sem fins lucrativos, que somos nós. Além disso, abriu caminho para privatizar 100% da previdência pública. É isso o que está colocado na Emenda Constitucional 103/2019.
Outra sociedade
Mas, não adianta consertar as consequências desses ataques aos nossos direitos adquiridos – fim dos planos BD, transferência do risco para os participantes, falta de planejamento estratégico de futuro, desrespeito ao marco regulatório da previdência complementar e aos contratos – se essa visão de superestrutura não for resolvida, construindo uma nova visão de sociedade, recuperando a solidariedade, o sentido de bem comum, de cooperação, não permitindo a pobreza obscena que temos neste país.
Nossa tarefa, como participantes e assistidos de fundos de pensão, é lutar pela revisão do marco regulatório, pela proteção dos nossos direitos já adquiridos e do cumprimento dos contratos, pela construção de um novo modelo com visão previdenciária e com possibilidade de investimentos de longo prazo, na economia real, em infraestrutura, contribuindo também para a reconstrução do país. Temos que brigar muito para perder pouco, resistir e trabalhar para construir um outro futuro.
Cláudia Ricaldoni é diretora da Anapar e membro do Conselho Deliberativo da Forluz
Fonte: Rede Brasil Atual